A dialética do processo eleitoral, intensa, visceral, cortante, tem o condão de gerar resultados práticos, como eleger ou derrotar seus protagonistas; mas produz também, em cada discurso, debate ou entrevista, a imagem esculpida na azáfama do dia a dia da caça ao voto. Ao fim e ao cabo de quase 60 dias de campanha, durante a qual a exposição pública funciona como uma espécie de scanner da alma e dos propósitos, há candidatos eleitos; outros não eleitos mas inegavelmente vitoriosos e os simplesmente derrotados – aqueles que saíram das eleições menores do que entraram. Perderam não só o pleito mas, sobretudo, a admiração dos eleitores.
Ao retornar da Europa na última sexta-feira, Ciro Gomes se inscreveu entre os que se apequenaram no curso destas eleições. Mostrou-se sem a dimensão do estadista projetado na campanha em palavras e atos. Quis apenas garantir a hegemonia da oposição em um hipotético governo Bolsonaro. Trocou o apreço pelos valores democráticos pelo precoce desejo de se firmar como opção para 2022. Só perdeu. Admiração, dos eleitores de esquerda que exigiam dele coerência. E respeito, da sociedade brasileira, que dele esperava atos magnânimos em defesa dos valores democráticos.
Hoje, na verdade, pouco valeu eleitoralmente sua postura trêfega no segundo turno. Seus eleitores foram naturalmente para Haddad. Mais do que o candidato do PT, foi Ciro quem perdeu; perdeu seus próprios admiradores que viram nesta decisão uma demonstração de pequenez política. Ciro jogou pôquer mas corre o risco de perder tudo. Se tivesse apoiado e Haddad perdesse, teria feito o seu papel e, com legitimidade ampliada, garantia o lugar natural de líder da oposição. Se tivesse apoiado e Haddad ganhasse, teria sido o maior responsável pela vitória. Em cima do muro, não ganhou nada; apenas o desprezo de quem via nele a possibilidade de renovação das práticas políticas.
Entende-se a mágoa de Ciro por não ter tido o apoio do PT, como defendera Jacques Wagner. Compreende-se a frustração do candidato ao não conseguir atrair o PSB, que optou por um acordo informal com o PT. A eleição tem mesmo lances, pressões, brigas ou até traições que desagradam evidentemente os candidatos. Mas fazem parte do jogo; é legítimo desde que ocorram na busca de espaço para garantir a vitória. Afinal, todos entram em campo para vencer. Intolerável, contudo, é o golpe apenas para derrubar um aliado histórico na expectativa de liderar a oposição. As rusgas do processo eleitoral não podem superar os compromissos com valores democráticos.
Ciro aposta no desastre de um hipotético governo Bolsonaro a fim de que se crie condições políticas para sua volta pela oposição. Ao fazê-lo, mostrou pouca importância a eventuais dificuldades por que possa passar a sociedade brasileira. Isto lhe pareceu de menor monta. Para a decepção de seus eleitores, Ciro, enfim, trocou valores éticos pelo simples e raso cálculo político. É desse maquiavelismo explícito que a sociedade brasileira tem se mostrado farta.
POR RICARDO BRUNO
Jornalista político, apresentador do programa Jogo do Poder (Rio) e ex-secretário de comunicação do Estado do Rio